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Causa de litígios, problema dos desplacamentos cerâmicos é debatido por especialistas a convite da ConstruLIGA

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Patologias relacionadas a revestimentos cerâmicos, especialmente em fachadas, sempre foram motivo de preocupação na construção civil, impulsionando o desenvolvimento de práticas e normas para minimizar tal ocorrências. Mas nos últimos dois anos, um fenômeno mais agudo – os desplacamentos cerâmicos em áreas internas – vem gerando litígios judiciais e exigindo a mobilização de toda a cadeia produtiva. Para se ter uma ideia, apenas uma das construtoras afetadas desembolsou mais de R$ 12 milhões em multas por atraso na entrega de imóveis em decorrência dessa patologia. Isso sem contar os danos à imagem.
Para entender o que está acontecendo, a ConstruLIGA convidou construtores, representantes do setor cerâmico e pesquisadores para discutir o assunto. Na mesa-redonda realizada em agosto, ficou claro que há um descompasso entre os elos da cadeia e que a solução para o problema passa por maior integração setorial. Confira a seguir:

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PARTICIPANTES DA MESA-REDONDA

Fábio Villas Boas – Diretor técnico da Tecnisa e coordenador do Comitê de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Comasp) do SindusCon-SP

Fábio Melchiades – Diretor do Centro de Revestimentos Cerâmicos (CRC). Desenvolve atividades de pesquisa na área de revestimentos cerâmicos no Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)

Antônio Carlos Kieling – CEO da Associação Nacional dos Fabricantes de Cerâmica para Revestimentos, Louças Sanitárias e Congêneres (Anfacer)

Rodrigo Borghi – Gerente nacional de qualidade e assistência técnica da Gafisa

Jonas Silvestre Medeiros – Projetista e consultor de fachadas e revestimentos. É diretor técnico da Inovatec Consultores

Ana Paula Menegazzo – Superintendente no Centro Cerâmico do Brasil (CCB)

Eric Cozza – CEO da ConstruLIGA e mediador do debate

 

DEBATE – DESPLACAMENTOS CERÂMICOS

Eric Cozza / ConstruLIGA – Patologias em sistemas construtivos sempre existiram. Mas parece haver um fenômeno mais novo que é o agravamento de desplacamentos em ambientes internos. Isso, de fato, vem ocorrendo? Desde quando?

Fábio Villas Boas – O desplacamento cerâmico sempre aconteceu, mas eram casos esporádicos, geralmente associados a falhas da mão-de-obra. Isso mudou há cerca de dois anos e meio, quando nosso controle de qualidade detectou um volume significativo de cerâmicas se soltando em banheiros e cozinhas. Ao estudar esses casos, percebemos que não era um problema localizado. Também vimos que, ao longo do tempo, as patologias se alastravam e mais peças se soltavam. Em reunião do Comitê de Tecnologia do SindusCon-SP, descobrimos que todas as 26 empresas que participavam do encontro enfrentavam, em maior ou menor grau, o mesmo problema. A partir daí começamos a buscar pontos de convergência. Contratamos uma empresa de pesquisa que estudou o caso. Constatamos que, nesse grupo de empresas, as argamassas utilizadas eram diferentes, assim como as bases. Algumas usavam cerâmica sobre emboço, outras sobre bloco e drywall. O único ponto em comum foi a cerâmica produzida por via seca fornecida por diferentes fabricantes.

Rodrigo Borghi – No nosso caso, os desplacamentos em área externa ainda prevalecem sobre os que ocorrem em interiores. Mas nos últimos três anos, notamos um maior grau de desplacamentos em áreas internas, sempre com revestimentos produzidos por via seca. Em um primeiro momento, desconfiamos da mão-de-obra. Mas percebemos que a mão-de-obra era sempre a mesma, em locais com e sem a patologia. Os materiais é que mudaram.

Jonas Medeiros – Atuo há trinta anos nesse mercado e nunca vi um volume de cerâmica soltando como agora. Temos uma anomalia muito séria que precisa ser investigada.

Fábio Melchiades – Eu recebi com surpresa essa informação da associação das patologias em ambientes internos com produtos fabricados por via seca. Isso passa pelo fato de que nenhuma norma brasileira ou internacional leva em conta o processo de fabricação. Quando você fala em assentar um produto, está interessado nas propriedades que ele possui, independente de como ele é fabricado. Além disso, nos ensaios já realizados, jamais notamos diferença com relação aos produtos via seca. Por fim, é natural a maior parte das patologias estar associada à via seca. Afinal, cerca de 75% da produção nacional se dá por via seca.

 

“Em um primeiro momento, desconfiamos da mão-de-obra. Mas percebemos que a mão-de-obra era sempre a mesma, em locais com e sem a patologia. Os materiais é que mudaram”, Rodrigo Borghi, gerente nacional de qualidade e assistência técnica da Gafisa

 

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 “É natural a maior parte das patologias estar associada à via seca. Afinal, cerca de 75% da produção nacional se dá por via seca”, Fábio Melchiades, diretor do Centro de Revestimentos Cerâmicos

 

Cozza / ConstruLIGA – Qual é a diferença entre os processos via seca e via úmida?

Melchiades – Tradicionalmente o processo mais utilizado para fabricar piso era por via úmida no qual todas as matérias-primas são misturadas com aproximadamente 35% de água para fazer a moagem. Após essa etapa, a água é evaporada para que a prensagem da mistura possa acontecer com o material em pó. A tecnologia de via seca, nada mais é, do que tirar essa adição de água para a moagem. O restante do processo é idêntico. Não se trata de uma invenção brasileira. É uma técnica que surgiu na Europa para produzir cerâmicas rústicas. No Brasil, a via seca foi desenvolvida para produzir peças com acabamento mais fino. Hoje exportamos essa tecnologia para muitos países. O Brasil é referência em produção de via seca.

Villas Boas – Temos dois conjuntos de obras simultâneas. Um deles utiliza cerâmica 100% produzida por via úmida. O outro é 100% via seca. A equipe de assentamento e as condições da base são iguais nos dois casos. Como explicar que em um conjunto a taxa de patologia é praticamente zero e no outro tivemos que arrancar 100% das placas? Em uma única obra foram 1600 cozinhas derrubadas por causa dessa patologia.

Borghi – Tivemos problemas com revestimento cerâmico em um empreendimento realizado em fases. Nas torres em que aplicamos via úmida não houve qualquer problema. Já naquelas que usamos via seca, o desplacamento beira 100%.

Kieling – A Anfacer tem acompanhado esse assunto. A tecnologia de produção evoluiu muito nas últimas duas décadas e mais acentuadamente nos últimos dez anos. Em especial no caso da via seca, o produto evoluiu a ponto de já conseguirmos produzir porcelanato por via seca. Há teses bem consistentes que indicam que o futuro da cerâmica está justamente na via seca. Exportamos revestimentos fabricados por via seca para mais de 100 países.

Melchiades – Na Europa, o interesse pela via seca se dá muito em função de questões ambientais. O consumo de água para produção é menor, assim como a emissão de gases e a poluição atmosférica gerada.

Medeiros – O interesse pela via seca se explica também porque o preço é mais competitivo e é mais fácil produzir.

 

Cozza / ConstruLIGA – Fora do Brasil, há registros de problemas de desplacamento interno?

Kieling – Não.

Villas Boas – Uma das diferenças que notamos no exterior diz respeito às argamassas. Os produtos que usamos no Brasil, embora sejam produzidos pelos mesmos fabricantes, têm características muito diferentes. Isso impacta o desempenho do sistema. A gente sabe que a indústria cerâmica tem controles. Mas não adianta nada a cerâmica ser tratada como uma joia se ela não tem o desempenho adequado na parede. Quer ver algo complicado? Quando compramos um saco de argamassa colante, seja ACI ou ACII, o tempo em aberto descrito na embalagem é de 15 minutos. Fizemos centenas de experiências e descobrimos que, passados cinco minutos, o tempo em aberto já foi embora, formando uma película sobre a argamassa que compromete a ligação. Falo de produtos que atendem às normas, produzidos dentro de um controle rigoroso de qualidade. O problema, a meu ver, é que as condições de ensaio em laboratório não têm relação com a realidade das obras.

“Acho que tínhamos uma margem de segurança que dava conta das imperfeições do processo. Algum fator novo consumiu o que sobrava dessa margem de segurança e o problema apareceu”, Fábio Villas Boas, diretor técnico da Tecnisa.

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Medeiros – Não tenho dúvidas de que a cerâmica usada para revestimento é um dos produtos que mais evoluiu nos últimos anos. Mas tenho convicção de que a tecnologia necessária para o uso maciço de cerâmica em edifícios não acompanhou o desenvolvimento do produto. Que passos concretos estão sendo feitos no sentido de termos mais segurança para especificar e usar cerâmicas? Não estamos fazendo a lição de casa com relação à aplicação desse produto.

Borghi – O sistema precisa ter uma blindagem como um todo. Sem isso, a gente acaba perdendo a confiança. Não adianta só uma parte do processo evoluir.

Medeiros – Imagine que temos um copo quase cheio. Se colocarmos qualquer coisa a mais, pode ser o suficiente para transbordar. Talvez isso tenha acontecido com a via seca. Não há saída a não ser olhar o sistema como um todo.

Kieling – A argamassa é um ponto crítico, independente do sistema. A ACI, por exemplo, não existe fora do país e aqui usamos de modo recorrente. A qualidade efetiva das argamassas, assim como a mão-de-obra são críticos. Além disso, as tipologias de produto cerâmico são muito diversas e há um componente custo. No Brasil tudo é induzido pelo custo. O fator primordial não é a qualidade. O nivelamento é por baixo.

 

“A qualidade efetiva das argamassas, assim como a mão-de-obra são críticos. Além disso, as tipologias de produto cerâmico são muito diversas e há um componente custo. No Brasil tudo é induzido pelo custo”, Antônio Carlos Kieling, CEO da Anfacer

 

Melchiades – Estamos envolvidos em um estudo financiado pela Anfacer para estudar não só a placa cerâmica, mas também a argamassa e a aplicação. Isso é reflexo de uma preocupação do setor que não existia antes. Hoje há um engajamento maior.

Kieling – Para esse estudo, contratamos a UFSCAR, a USP e o CCB. A ideia é avaliar a performance do produto em diferentes situações por cinco anos. Serão construídos 48 painéis com todas as alternativas possíveis.

Medeiros – A iniciativa é boa, mas deveria ter sido feita há trinta anos.

 

Cozza / ConstruLIGA – Qual é o papel das normas técnicas nisso tudo?

Villas Boas – O conjunto de normas de revestimento cerâmico para fachadas (NBR 13.755) foi reescrito e está prestes a ser recolocado em consulta pública. São normas de projeto e assentamento atreladas a pisos e paredes assentados com argamassa colante.

Medeiros – Só para comparar, no Japão as peças cerâmicas são desenvolvidas para aplicações específicas. Eles têm cerâmica para o piso do banheiro, para o rodapé, para a pingadeira da janela. Lá, a indústria está muito voltada à aplicação. Deveríamos prestar mais atenção nisso.

Ana Paula Menegazzo – Um problema é que o mercado é ingrato. As empresas que investem em produtos diferenciados têm um custo embutido. Nem sempre o mercado está preparado ou disposto para pagar esse preço. A gente está no limite da qualidade. É preciso fazer um investimento grande no setor cerâmico, como já vem sendo feito. Mas também é preciso melhorar os processos com urgência.

“É preciso fazer um investimento grande no setor cerâmico, como já vem sendo feito. Mas também é preciso melhorar os processos com urgência”, Ana Paula Menegazzo, superintendente no CCB.

 

Cozza / ConstruLIGA – Quais recomendações os participantes desta mesa dariam para quem está sofrendo com o problema dos desplacamentos e para quem pretende especificar e assentar revestimentos cerâmicos?

Villas Boas – Enquanto não soubermos o que está acontecendo, a Tecnisa não especifica mais cerâmica via seca. Não podemos usar um produto sem saber por que eles caem.

Borghi – A Gafisa também não usa mais.

Villas Boas – Acho que tínhamos uma margem de segurança que dava conta das imperfeições do processo. Algum fator novo consumiu o que sobrava dessa margem de segurança e o problema apareceu. Quando decidimos investigar nosso problema específico, procuramos isolar variáveis. A conclusão não é única, mas uma série de fatores. Acho que estamos medindo algo que não representa o fenômeno com o qual estamos lidando. É como andar em uma estrada que tem limite de velocidade em quilômetros com um carro equipado com velocímetro em milhas. Eu posso achar que estou dentro do limite e não estar.

Menegazzo –Talvez tenhamos que desenvolver novos adesivos que permitam mais movimentação. Acho que a tendência de usarmos peças de grande formato e com baixa absorção vai continuar.

Melchiades – Seguindo com essa ideia de aumentar a taxa de segurança, fazer uma placa com EPU mais baixa talvez possa ajudar. Mas será só isso resolve? Fazer um assentamento melhor é outra variável que pode impactar. Como vocês vêm a possibilidade de usar a dupla colagem? Eu pergunto porque testes em laboratório mostraram que a dupla colagem aumenta em 15% a resistência mecânica em relação ao sistema simples sem deformação de cordão.

Villas Boas – A dupla colagem é uma solução ruim por diminuir a produtividade e por ser difícil de ser controlada. Quando viramos as costas, o assentador não faz a dupla colagem. Além disso, no caso dessa patologia registrada em ambientes internos, 100% do rompimento acontece na junta argamassa-cerâmica. O rompimento não é na base. A placa sai limpa.

Menegazzo – Notamos que a maior parte dos produtos que estão destacando concentra-se na faixa de 6-7% de absorção. A monoporosa que foi utilizada no passado está na faixa de 14-15% de absorção. Podemos concluir que foi feita uma troca de produto, mas que não se discutiu se isso afetaria o sistema como um todo.

Villas Boas – A indústria da construção compra cerâmica da área técnica das indústrias, e não em uma loja de varejo. Por que o vendedor não pergunta onde ele vai aplicar?

Medeiros – O construtor usa um produto com 15% de absorção há mais de trinta anos. Agora foi colocado para ele um produto para a mesma aplicação com 6% de absorção. Ninguém pensou nas implicações disso? Do ponto de vista da norma de produto, nada levantava suspeita que isso poderia causar alguma interferência no revestimento aplicado. Mas o fato de existir uma dúvida, implica em um dever de casa que deveria ser feito pela indústria. Afinal, ela é quem está colocando no mercado um produto para ser vendido e é ela quem deve dizer as condições básicas de uso.

“O construtor usa um produto com 15% de absorção há mais de trinta anos. Agora foi colocado para ele um produto para a mesma aplicação com 6% de absorção. Ninguém pensou nas implicações disso?”, Jonas Silvestre Medeiros, diretor técnico da Inovatec

 

Menegazzo – A indústria fala para seguir as normas de assentamento.

Medeiros – As normas de assentamento brasileira são ruins. Essa norma que acabou de ser revisada não é espetacular. Isso é absolutamente insuficiente para resolver os problemas.

Menegazzo – A gente está começando a trabalhar em uma norma de especificação de produto. A ideia é fazer algo parecido com a normativa francesa que mostra as características que o produto deve ter para ser usado em cozinhas, por exemplo.

Medeiros – Nos últimos vinte anos, na hora de especificar cerâmica eu faço um gerenciamento de riscos. O que podemos fazer para minimizar o risco? Podemos, por exemplo, mexer na argamassa, optar por um produto com EPU zero, recorrer às pastilhas de porcelana.

Melchiades –  A gente tinha um coeficiente de segurança que foi eliminado por alguma razão. O que precisa ser feito é identificar as variáveis mais expressivas que fizeram com que esse coeficiente de segurança desaparecesse.

Medeiros – Não há saída fácil. Você pode usar uma argamassa ACIII achando que está resolvendo o problema e não obter o efeito esperado. Da mesma forma você pode fazer assentamento com dupla colagem e fazer mal feito.

 

Cozza / ConstruLIGA – Não preocupa o risco de sacrificarmos uma tecnologia tradicional, que possui larga aplicação em todo o Brasil e toda uma indústria instalada? Isso seria ruim para todos na cadeia produtiva. Pensando nisso, é possível desenvolver uma integração setorial em prol de uma solução para o problema dos desplacamentos?

Villas Boas – É impressionante o distanciamento entre a indústria e as construtoras. A gente não conversa. As empresas não têm feedback. Uma série de aspectos poderiam ser melhorados com mais conversa. E não falo só da cerâmica, mas dos produtos de modo geral. Estamos muito reativos. O Kieling propôs uma reunião há um ano para uma conjugação de esforços, mas a coisa não andou. Chegamos a propor um termo de cooperação com três fabricantes e não houve consenso. É uma pena.

Medeiros – Eu duvido que, no futuro, se chegue à conclusão de que a única responsável por esses problemas é a cerâmica via seca. O problema foi que mudou alguma coisa – e basicamente mudou a cerâmica – e o processo continuou o mesmo. O processo tinha que ter sido alterado.

Villas Boas – As pessoas tendem a apresentar a mudança na EPU como solução. Não sei se é isso. A gente precisa focar no desempenho do conjunto. Temos que recompor esse fator de segurança de alguma forma.

Kieling – Para vocês terem uma ideia, a Anfacer não queria fazer sozinha esse estudo já citado. Mas não houve interesse dos demais elos da cadeia. Estamos atrasados em várias coisas. A cerâmica evoluiu em uma direção e o restante da cadeia não acompanhou. Temos que mudar isso.

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